Existem várias formas de dizer o que é a tipografia. A maioria das pessoas identificaria a tipografia como um local onde se fazem impressões, nomeadamente de recibos, papéis de carta e envelopes, coisas relacionadas com as papelarias dos ofícios administrativos. Identificar as disciplinas, conceitos ou ismos em virtude do produto que delas resulta é, muitas vezes e erradamente, um procedimento normal para quem não sabe ao certo o que se está a perguntar.
Mas afinal o que é a tipografia?
Segundo o ‘Collins Concise Dictionnary’ (1999), tipografia é:
1. uma arte, um ofício ou processo de compôr texto e imprimir por meio de tipos;
2. o planeamento, selecção e composição de tipos para efectuar um trabalho impresso.
Fazendo uma adaptação à letra do latim, tipografia é a escrita com tipos. Um tipo é um molde, um pequeno pedaço de uma liga de chumbo e antimónio que contém na sua face, e em relevo, a forma ‘espelhada’ de uma letra (mas também sinais de pontuação e outros símbolos tipográficos), para que quando tintada e pressionada contra o papel resulte numa letra escrita ou impressa. Estes tipos são cada um dos caracteres tipográficos que constituem uma matriz de impressão.
Este processo remonta à época de Gutenberg, perto do ano 1450, onde alegadamente se terá impresso pela primeira vez com caracteres móveis†. As letras de Gutenberg não eram mais do que formas extrudidas e escavadas, inspiradas na caligrafia dos monges copistas. Com elas organizou as matrizes de impressão que levaria à impressão das páginas da Bíblia. Iniciava-se assim o processo de impressão em massa: um processo muito mais rápido e que evitava os erros humanos.
Com o desenvolvimento desta técnica, a tipografia começava então a definir-se como a gestão das letras, que implicitamente expressa composição, ordenação, processo e o tipógrafo é alguém que possui a capacidade organizacional para a dominar e respeitar.
A função primordial da tipografia é a comunicação da linguagem verbal. É através do verbo que descrevemos sentimentos, pensamentos e os comunicamos a outros que partilham dos mesmos códigos linguísticos, e a nós próprios. Enquanto esses códigos se mantiverem, o conteúdo escrito será perpetuado. Desta foram, a tipografia assume um papel de "formalizar e imortalizar a memória", e todas as ciências humanas se baseiam nesta premissa. No entanto, as descobertas evoluem e competem entre si e é necessária a clareza e a fidelidade das ideias e dos discursos. Quando não é possível a presença do autor para nos falar directamente, precisamos de um meio para que sua razão chegue a nós, inalterada, crua. Assim, ao tipógrafo é atribuída a responsabilidade de respeitar e organizar o discurso sob forma de texto, por forma a que os conteúdos sejam respeitados e sem o seu sentido alterado.
Se pensarmos que todos os livros que lemos são ‘criados’ por tipógrafos, chegamos a outra definição de tipografia: o motor da aprendizagem. A tipografia enquanto meio de transmissão de cultura e conhecimento. Com isto estamos a enaltecer a literacia. Todos nós aprendemos através de livros que alguém escreveu, baseado no que leu, que alguém escreveu. O casa do conhecimento é construída por tijolos livrescos que sobrepostos, conjugados, constróem o edifício que a ambição e sede humanas tentam desenhar, mas não sabe ainda a sua forma. Todos os dias surgem novas peças com as quais se vai construindo.
A propósito de formas, todas as letras são formas, contraformas, símbolos gráficos cujo antepassado, iconográfico ou não, constrói uma sequência de signos, símbolos e sinais que estabelecem uma lógica que, uma vez aprendida, forma uma multiplicidade de possibilidades‡. As letras são também a transposição do som para um código gráfico visual. Com elas construímos fonemas e palavras. Com as palavras construímos frases, e com frases textos. Este papel da tipografia faz com que esta seja qualificada como uma arquitectura de ideias e construção da linguagem, revelando o papel da tipografia na construção de narrativas, criando espaços intelectuais por onde o leitor deambula.
A linguagem escrita possui regras para articular um discurso, dando-lhe ritmo e pausa, demonstrando atitudes, fazendo o leitor imaginar uma conversa ou um monólogo. Existe todavia uma componente da tipografia que mede e provoca a atenção do leitor, dando-lhe pistas visuais que o atraem para a leitura, mas que também o podem afastar: o desenho da letra (typeface) e a composição. Há quem defenda que o desenho da letra, em conjunto com a composição, atribui uma personalidade ao texto. Esta ferramenta permite que visualmente exista (ou deva existir) uma expressão visual do seu conteúdo, pelo que a escolha do desenho de letra é uma tarefa de grande responsabilidade. Esta opção trará consequências no peso visual e na atribuição de sentido por parte do leitor ainda que este, para que possa atribuir uma determinada ‘qualidade’ ao discurso, deve estar dotado de algumas referências culturais e estéticas que lhe permitam contextualizar as formas que lhe deram origem. A typeface designer Zuzana Licko diria que um typeface é uma manifestação ornamental do alfabeto. Se o alfabeto canaliza palavras, um typeface canaliza o tom, estilo e atitude. Correntemente, referimo-nos ao typeface como um tipo de letra ou, na versão de matriz digital, uma fonte (todos nós já experimentámos formatar o texto no Word com várias fontes).
No desenho das letras está explícito, ou implícito o contexto do seu desenho. Refiro-me à cultura que a circundava, as ideias revolucionárias que a levaram a assumir a sua personalidade, as formas que os artistas acreditavam ser mais expressivas, a música mais emotiva. Elas revelam toda a história, toda a fonte de onde beberam os seus ritmos, como sobreviveram no seu papel. Elas são simultaneamente a História e o seu testemunho. Alguns desenhos de letra são imortais por isso mesmo: pela matéria que as suporta e pela humanidade que delas emanam, que têm o poder de nos causar arrepios, de nos fazer rir ou chorar. O seu desenho é importante por isso mesmo, porque possui uma dignidade própria e é essa dignidade que respeita o seu conteúdo. Sob esta óptica, a tipografia pinta com palavras. É uma arte expressiva na qual o conteúdo emotivo é reflectido no manuseamento das formas das palavras, das letras; personificar os poemas de Cesário Verde: fazer com que olhando apenas, sem ler, se consiga perceber o que os poemas revelam.
Todos nós imaginamos as imagens daquilo que lemos e nos contam e é esse um dos atributos mais humanos que possuímos. Já uma vez se disse que uma imagem vale mil palavras, mas as imagens são facilmente manipuláveis e muitas vezes, sem um contexto, são gratuitas e sem sentido. Um designer tipográfico começa da palavra para cima, um designer gráfico começa da imagem para baixo. Esta afirmação de Erik Spiekermann apela à introspecção, à reflexão e ao imaginário. O objectivo é criar uma cumplicidade entre o leitor e o texto, fazê-lo reflectir sobre o que lê, com o auxílio das pistas visuais que lhe enfatizam a atitude. As imagens, escolhidas pelo designer ou imaginadas por aquele que lê devem estar de tal forma ligadas às palavras, que uma sem a outra é como um ‘i’ que não tem ponto. Ainda que hoje sejamos bombardeados com cores e imagens gritantes e intrusivas, as letras prevalecerão, seja qual for o suporte.
Ainda que a cultura altere os códigos linguísticos, e o símbolo de ‘a’ deixa de ser desenhado dessa forma ou deixa de representar esse som, as letras não deixarão de existir. Riscadas no barro, esculpidas na pedra e na madeira, molhadas nos papiros, dançando com os pincéis, as plumas, fundidas no chumbo, tintadas, carimbadas, picadas, sopradas, as letras e as palavras têm um poder imenso que pode ser usado em todos os sentidos e para todos os destinos.
A tipografia é, assim, a testemunha, a personalidade,o sussurro e o grito.
† Na realidade, os caracteres móveis terão sido inventados por Bí Sheng em 1040, mas devido às grandes diferenças culturais, nomeadamente ao nível linguagem escrita com formas de expressão caligráfica, e os próprios ideogramas que ascendem a um nº superior a 44.000, este processo de impressão não teve desenvolvimento.
‡ O alfabeto que hoje conhecemos, e os próprios dígitos ou números, resultam da fusão de culturas. Os romanos esculpiam nas suas colunas as letras que hoje conhecemos por maiúsculas, Carlos Magno ordenou que se escrevessem as suas leis com letras minúsculas que identificassem a sua palavra, e os dígitos de 0 a 9 foram um legado dos mouros.
Bibliografia: "Elements of Typographic Style", Robert Bringhurst; "Type and Typography", Phil Baines & Andrew Haslam; "Stop stealing sheep and find out how type works", Erik Spiekermann, entre outros.
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